A Educação em Saúde numa Perspectiva Transformadora
quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010
Uma das concepções mais generalizadas sobre educação e saúde é aquela cujas atividades se desenvolvem mediante situações formais de ensino-aprendizagem, funcionando como agregadas aos espaços das práticas de saúde. Os traços mais evidentes das relações que se estabelecem em situações desse tipo são o didatismo e a assimetria expressa na ação que parte do profissional de saúde na condição de “educador” em direção ao usuário dos serviços de saúde na condição de “educando”.
O didatismo ocorre na medida em que essas atividades tendem a ser desenvolvidas sem considerar as situações de risco de cada comunidade e sem levar em conta o conjunto das ações de saúde desencadeadas nesse sentido, ou seja, desenvolvem-se aparentemente como um fim em si mesmo.
A eficácia da educação em saúde estruturada nestes termos estaria assentada apenas naqueles aspectos relativos a conteúdos e tecnologias de ensino, sem questionar os seus resultados em termos individuais e coletivos e até mesmo, sem estabelecer a vinculação dos problemas de saúde de grupos sociais específicos com as suas condições reais de vida.
A assimetria diz respeito ao fato de que essas práticas educativas realizam-se na perspectiva da passagem de um saber ou de uma informação focalizada apenas no desenvolvimento de comportamentos ou hábitos saudáveis, onde os profissionais da saúde figuram como “os que sabem” e os usuários dos serviços desenvolvem o papel “dos que desconhecem”, negando o diálogo como fundamento dessa relação, visto que o saber da
clientela nem sempre é considerado como carregado de importância e de significado para a equipe de saúde. Ou, então, como afirma Morin, o diálogo possível, neste caso, é aquele que não reconhece para o outro a mesma dignidade (Morin. 2004). Com isto, não negamos em definitivo as atividades “formais” de educação em saúde, mas apontamos para o fato de
que a educação é uma dimensão das práticas de saúde. Ou seja, as práticas de saúde são práticas educativas por que se estruturam como um processo de trabalho. Um processo de
trabalho supõe sempre a transformação de um objeto em um novo objeto, seja este material, seja uma idéia, uma consciência, uma mentalidade, um valor. É no trabalho em saúde que os profissionais deste campo, os grupos sociais usuários da rede de serviços e os gestores adquirem identidade. Isto é, se constituem como sujeito em relação. Relação que impõem sempre a presença do outro (Mendes Gonçalves.1994).
Portanto, independentemente dos momentos formais de ensino/ aprendizagem contidos nas nossas práticas de saúde, o modelo de atenção à saúde predominante na sociedade brasileira (estrutura, processos e relações) está fundado em um Projeto político-pedagógico, explícito ou não, que tende a reproduzir a maneira como a sociedade brasileira está estruturada, assim como as relações sociais, relações de trabalho, que lhes são
características.
A essência humana é a resultante das relações que homens e mulheres têm estabelecido historicamente (Misik.2006). Isto equivale a afirmar que é no processo de trabalho em que
homens e mulheres, em interação com o outro e com o meio, constroem-se diante dos outros; constroem-se reciprocamente; acrescentam à natureza tudo aquilo a que denominamos cultura.
Por isso considera-se que o trabalho é uma prática social. Em outras palavras, nos constituímos como sujeitos, nos educamos, aprendemos a ser, tomamos consciência de nós e do outro no processo de relações que produz e reproduz a sociedade da qual participamos. O trabalho em saúde, por sua vez, demarca um espaço parcial desse processo mais geral e permanente de construção da sociedade.
Por isso também é visto como uma prática social, porque também se desenrola tendo por finalidade a produção e reprodução da sociedade e só por isso constituem, também, uma prática educativa. Nesse sentido, o espaço da saúde materializa-se com base
em distintos projetos, que visam à transformação de uma situação de saúde em uma nova situação, orientados por diferentes concepções de mundo e de homem. Logo, nesses projetos estão postas distintas direções e intencionalidades, que se expressam nos seus respectivos projetos político-pedagógicos, que como já foi afirmado estão na base das
relações que caracterizam o Sistema Único de Saúde, hoje.
Em termos práticos, isto significa que a forma dominante como as práticas de saúde são realizadas expressam um projeto específico para a sociedade brasileira, o que supõe que outros projetos são possíveis de co-existir, coerentes com propostas alternativos de sociedade que apontem, por exemplo, para a extinção das iniqüidades e das injustiças sociais.
Isto implica por sua vez que, além da transformação da situação de saúde da sociedade brasileira, impõe-se ao trabalhador da saúde a necessidade de uma permanente transformação da consciência sanitária dos brasileiros, de modo a torná-la consentânea com o projeto de uma nova sociedade. Em síntese, o agir em saúde não é um que fazer neutro. O trabalho em saúde como prática social, contém uma dimensão política e ideológica, sempre referidas a um projeto de sociedade, o que implica um comprometimento ético por parte de todos o sujeitos em relação neste campo, sejam eles os grupos sociais usuários da rede de atenção à saúde, os profissionais das equipes de saúde, os gestores (Mehry et alli. 2003).
Vista como uma prática política, o trabalho em saúde evidencia o componente do poder em termos técnicos, políticos e administrativos, que expressam o projeto dominante no campo da saúde; os conflitos existentes nesta área; as opções em termos tecnológicos e organizacionais; as formas como se encaminham as relações entre os grupos sociais e as autoridades da saúde; o modo como a atenção em saúde assume os seus contornos em termos estruturais, físicos, de atos e procedimentos.
Dessa forma, se é verdade que nos educamos e nos constituímos como sujeitos mediante as relações sociais que estabelecemos no campo da saúde a construção da nossa individualidade; a emergência da nossa consciência sanitária; o sentimento de pertinência a um grupo social específico dependerá da qualidade das práticas de atenção à saúde expressas nas suas estruturas físicas, nos seus processos, e nas relações usuários/equipes/gestores.
Nestes termos, a prática educativa em saúde amplia-se, visto que ultrapassa uma mera relação de ensino/aprendizagem didatizada e assimétrica; extrapola o cultivo de hábitos e comportamentos saudáveis; incorpora a concepção de direção e intencionalidade, visando à um projeto de sociedade; será sempre construída tendo por referência situações de saúde
de um grupo social ou de uma classe específica; supõe uma relação dialógica pautada na horizontalidade entre os seus sujeitos; recoloca-se como atribuição de todo o trabalhador
de saúde. Isto porque não são as atividades formais de ensino que educam, mas sim, as relações mediante as quais, num processo de trabalho, transformamos a nossa consciência em uma nova consciência.
Dito isto, aos trabalhadores da saúde impõe-se a necessidade de um comprometimento ético, diante do qual cada um deles revela-se como detentor da função de sistemazador da situação de saúde em favor de grupos sociais específicos, supondo-se nessa relação o estabelecimento de vínculos de identidade, pertinência ou de solidariedade, por exemplo (Gramscci.1982). Seria este o fundamento do caráter educativo das práticas de saúde; seria esta a essência do papel de educador do qual todo e qualquer trabalhador do campo da saúde está investido. Isto posto, quais seriam então, as possibilidades de ser dos servidores da Funasa que atuam na área de educação em saúde?
Primeiramente, torna-se evidente que, uma vez que as práticas de saúde são constituintes da sociedade brasileira, o trabalhador em saúde, assim, como qualquer outro trabalhador,
está eticamente vinculado a um projeto para a sociedade brasileira, esteja ele consciente ou não deste fato. Esse compromisso se expressará na maneira como o seu agir estiver estruturado, o qual redundará em um tipo de estrutura; um padrão de processo de trabalho; uma qualidade de relação entre os sujeitos; uma forma específica de vinculação dos sujeitos fundamentais nesse campo, diga-se: os grupos sociais usuários da rede de serviços; os trabalhadores do setor; os gestores do setor.
Na medida em que o agir de todo o trabalhador em saúde é um agir educativo; ele se transforma em um que fazer que assume uma direção e uma intencionalidade que desemboca em um dado projeto de sociedade. Este projeto pode estar condicionado a sua reprodução ou manutenção nos termos em que ela já existe ou estar empenhado em uma transformação radical das bases da sua estrutura e do seu funcionamento.
Oviromar Flores


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